sexta-feira, fevereiro 25

A guerra também passou no Festival de Berlim

A Berlinale, festival de cinema que este ano se realizou entre o dia 10 a 20 de Fevereiro em Berlim teve como tema oficial África, devolvendo o continente esquecido ao mapa-múndi, e apontando-o como central na agenda das preocupações políticas ocidentais. “Apesar da quantidade de desastres, guerras, sofrimento, dor e esperança vindos daquele continente, acho que o que acontece na África vem sendo sistematicamente evitado, particularmente pelo cinema de Hollywood”, afirmou o realizador Terry George para justificar a necessidade de uma nova atenção para este continente. Nestes 22 filmes em competição e nas 343 produções provenientes de 52 países, distribuídas nas múltiplas secções do Berlinale, para alem de África, tivemos ainda a recordação constante do Holocausto e a lembrança incontornável do conflito israelo-palestiniano.
Aliás, Dieter Kosslick, director geral do festival, afirmou mais tarde que o festival deste ano era sobre sexo, futebol e política, parecendo que todo o festival se pautou nuclearmente pela preocupação de pôr o mundo real numa tela de cinema Efectivamente, o futebol, a pedofilia, a pornografia, o futebol e as claques (referência ao filme Tickets), os nazistas, os homens bomba e os conflitos étnicos: tudo isto se resume à realidade pura, nua, crua e dura.
Presidido pelo júri Roland Emmerich (realizador alemão), este festival é acima de tudo vontade de denúncia: guerras e conflitos de africanos contra africanos, de alemães contra alemães, de húngaros contra húngaros – este festival fala de diferentes guerras mas toda a guerra tem o mesmo travo amargo. E é esse ponto comum que se articula em todo o discurso da competição de Berlim deste ano.
É de notar que o urso de Ouro foi para a produção africana de Mark Donford-May: U-Carmen ekhayelitsha, destacando de novo o continente africano nas suas tradições e na sua cultura.
(passo a uma abordagem acerca de alguns dos filmes presentes neste festival)

Sophie School - the final days de Marc Rothemund

Sessenta anos após a libertação de Auschwitz, Sophie School conta-nos os últimos dias de vida de uma jovem de vinte e um anos, líder e co-fundadora de um movimento de resistência anti-nazi. Realizado por Marc Rothemund, vencedor do urso de prata de melhor realizador, e interpretado por Júlia Jentsch, no papel de Sophie School, vencedora do urso de prata de melhor actriz, este filme é sem dúvida mais um marco cinematográfico na memória do nazismo e da II Guerra Mundial. Pela sua qualidade e espírito criativo, ameaçou desde cedo ser um sério candidato ao Urso de Ouro, prémio que lhe foi “roubado” pelo filme de Mark Dornford-May.
A acção descrita no filme desenrola-se por volta de 1943, momento em que Sophie Shool e outros membros da associação Rosa Branca se encontram em Munique, ocupados com a distribuição de folhetos de propaganda anti-nazi. Sophie School, a líder do movimento, e o seu irmão, Hans School, são apanhados enquanto distribuíam estes folhetos na Universidade de Munique. São imediatamente presos, e mais tarde condenados à morte e executados. Porém, entre o momento da prisão e o da execução, reside a parte mais rica do filme, onde Sophie, protagonista central da história, desiste de si própria para confrontar os oficiais da Gestapo com ameaças e acusações: insurge-se contra a desumanidade do anti-.semitismo e contra a injustiça de todo o sistema nazi, e profetiza a futura execução daqueles mesmos oficiais (“You’re hanging us today but, tomorrow, it’ll be your heads that will roll!”).
Sophie School é, assim, mais uma narrativa em que se demonstra a vontade sentida pelos alemães de encarar de frente a memória do nazismo, com os seus carrascos e vítimas, e sem, no entanto, recorrer a estereótipos.



Fateless de Lájos Koltai

No tema do nazismo, insere-se igualmente a produção húngaro-britânico-alemã Fateless, de Lájos Koltai, baseada no romance Sem Destino, do Prémio Nobel húngaro Imre Kertész (2002), e incluída de última hora na “corrida” ao Urso de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Berlim. Para a inclusão de Fateless, foi retirado da secção oficial o filme Heights, de Chris Terrio, com Glenn Close e Isabella Rossellini, que foi, assim, exibido em secção 'hors concours'.
Fateless, primeira longa-metragem de Koltai, mostra o Holocausto húngaro através dos olhos de um adolescente judeu de 14 anos que, em 1944, é detido pela polícia húngara em Budapeste e deportado primeiro para Auschwitz e depois para Buchenwald. Aliás, este é precisamente o percurso biográfico de Kertész (o já referido autor do argumento). Para sobreviver ao horror dos campos de concentração, Gyuri Koves, o adolescente protagonista de Fateless (personagem interpretado por Marcell Nagy, de 13 anos) tenta encarar estes campos com naturalidade, como se estes fossem uma parte do quotidiano, como se fossem algo rotineiro. Nada falha nesta abordagem cinematográfica da situação do povo húngaro judeu durante a II Guerra Mundial: desde a distinção através da estrela de David até à deportação e à vivência nos campos de morte, e até mesmo ao regresso dos sobreviventes a uma Budapeste pós-guerra: tudo está meticulosamente filmado. Para além disto, o próprio protagonista, uma personagem de todo absorvente, faz com que o filme não se reduza ao tema do Holocausto e faz com que o espectador entre dentro das sensações vividas no ecrã, estendendo o filme ao tema comum da existência humana, conforme refere o produtor do filme (veja-se nas fontes citadas).
Este filme anuncia a promessa de ajudar a Hungria a encarar de frente o anti-semitismo que marcou o seu passado. Mais de meio milhão de judeus húngaros morreram no Holocausto, e este país, segundo o escritor Kertész, ainda não encara facilmente a passada colaboração do seu governo com a Alemanha nas deportações em massa, de base anti-semita. Assim, segundo as fontes assinaladas, Lajos Koltai (em declarações à Reuters) indicou que uma das mensagens do filme tem precisamente a ver com esta necessidade de encarar o Holocausto de frente. Segundo o realizador, o filme “quer”que as pessoas falem sobre o Holocausto, quer “construir” e não fazer “esquecer o que aconteceu”, quer expor essa “cicatriz” que todos europeus guardam do nazismo, e quer finalmente afirmar a necessidade de falar sobre tudo isto como forma de precaução. A mensagem final será mesmo essa, segundo Koltai: “Tenham cuidado. Poderá voltar a acontecer.”. Esta mensagem foi ainda confirmada pela intervenção do Nóbel Imre Kertész, também roteirista desta co-produção, que chamou a atenção para a “revoltante” ascensão de grupos neonazis na Alemanha.


Paradise Now de Hanny Abu Assad

Realizado pelo palestiniano Hany Abu-Assad (residente na Holanda) e vencedor do Prémio Anjo Azul, este filme, que nos contava a história de dois bombistas suicidas palestinianos, encantou a plateia do Berlinale, pelo que os críticos não lhe pouparam elogios.
Filmado exclusivamente nos territórios da Palestina (Nablus), Paradise Now desenha os contornos dramáticos ou mesmo trágicos do interminável conflito israelo-palestiniano. A narrativa centra-se nas últimas 24 horas da vida de dois jovens palestinianos, amigos desde a infância, que são recrutados para um bombardeamento suicida em Telavive. Tudo se desenrola à volta dos conflitos interiores destes homens, das suas motivações para protagonizarem um ataque suicida, das suas fraquezas e afectos, das suas paixões, das suas hesitações, da sua revolta e desespero: tudo se desenrola à volta da pessoa real que existe por trás de um homem-bomba, tudo se desenrola em volta do suicida enquanto pessoa de carne e osso.
Filmado em condições inacreditáveis, por vezes debaixo de tiro (após um míssil israelita ter destruído um carro nas proximidades, parte da equipa abandonou a rodagem) e apoiado num trio de actores árabes capaz de uma um representação à altura, Paradise Now tornou-se num dos filmes apontados como merecedores do Urso de Ouro, o que efectivamente não aconteceu.
Trata-se de um filme político, ousado, rigoroso e ponderado, sendo assim um contributo importante quer a nível da causa política que envolve, quer a nível do próprio trabalho cinematográfico. É, para além disto, um filme com um argumento difícil devido à polémica que envolve e aos milhares de paradoxos e erros em que se pode facilmente cair. Porém, H. Abu-Assad conseguiu, segundo as fontes citadas, fazer face a este obstáculo e seguir um caminho sem grandes solavancos: mostra a guerra israelo-palestiniana no fenómeno mais incompreensível de todos, para a cultura ocidental: os homens-bomba, ou como lhe chamaria qualquer telejornal nacional, os terroristas.


Hotel Rwanda de Terry George

Este filme de Terry George sobre o genocídio ruandês de 1994, realizado a partir de um esforço conjunto entre o Canadá, a Itália, o Reino Unido e a África do Sul, e filmado neste último país, foi nomeado para três Óscares e foi exibido neste festival em carácter hors de concourse.
Vencedor do prémio “Cinema para a paz”, narra a história de uma espécie de “Schindler” africano que salva ruandeses; chama-se Paul Ruseabagina e é gerente de um hotel em Kigali, conseguindo com uma notável astúcia salvar a vida de 1200 refugiados. Este Schindler é aliás interpretado por Don Cheadle, actor que entra bem no papel desse salvador, desse “herói humanista”que se recusa a compactuar com o genocídio dos tutsis.
É um filme que de novo chama a atenção para a apatia ocidental perante o genocídio ruandês mas que não a acusa e denuncia tão aberta e violentamente como Peck em Sometimes in April. O salvador incluído no filme, de certa forma, acalma o espectador de Hotel Ruanda. Para além disto, segundo as diversas fontes consultadas Hotel Ruanda, enquanto obra cinematográfica, prima apenas pela representação, estando longe de denotar uma realização excelente ou uma montagem fora do comum ou qualquer outro elemento digno de nota.



Sometimes in April de Raoul Peck

Sometimes in April é um filme de Raoul Peck integrado na competição pelo Urso de Ouro que retrata o conflito entre tribos rivais em Ruanda que levou ao genocídio de cerca de 800 mil ruandenses em Abril de 1994. Financiado por companhias francesas, ruandenses e americanas, este filme narra a história de dois irmãos que combateram em facções opostas durante os cem dias da guerra entre hutus e tutsis, da qual resultou esse massacre de quase um milhão de pessoas. Um dos irmãos era radicalista e incentivava a violência (hoje em dia encontra-se a aguardar julgamento), o outro era um ex-soldado do exército da maioria Hutu que se negara a matar os conterrâneos da minoria Tutsi.
Filmado em Ruanda, exibe uma ideia fundamental: o fechar dos olhos e o tapar ouvidos ocidentais perante esta mancha de guerra africana. Todo o filme é essa revolta, essa vontade de denúncia, de mostrar uma guerra que não passou na televisão, de apontar o dedo aos culpados, aos ficaram cegos e surdos quando ouviram falar de um massacre em Ruanda. Isto é por exemplo bastante visível quando a subsecretária de Estado dos EUA (Debra Winger) mostra aos superiores um documento da CIA que prevê um massacre em grande escala em Ruanda e pede que medidas urgentes sejam tomadas. Perante isto, o governo americano afirma não ter informação suficiente para entrar em acção, sendo que a sua prioridade passa a ser retirar os cidadãos americanos de Ruanda. A ironia destas acusações ainda aumenta, quando, ao ser ameaçado por Debra de uma possível intervenção americana, um oficial do exército hutu lhe responde :''Por que vocês, americanos, viriam para cá? Nós não temos petróleo, não temos diamantes, não temos nada que possa interessar a vocês''. Assim, conforme Debra acaba por afirmar, ficámos coma sensação de que todo o Ocidente errou em Ruanda.
Raoul Peck traz-nos assim um filme honesto e principalmente necessário, já que, embora foque um acontecimento autêntico e factual do passado, Sometimes in April traz-nos um reflexão urgente. A própria evolução das personagens se pauta segundo esta ligação entre passado e presente, como se no filme nos segredassem um pedido de atenção constante ao presente. Como o próprio realizador esclareceu, “O filme é um testemunho da Ruanda de hoje”. Segundo certas fontes, o filme tem, assim, uma face dupla: por um lado inevitável e imprescindível denúncia política, por outro uma obra cinematográfica mediana que nada acrescenta ao “cinematógrafo internacional”. Muito bom na “guerra”, médio apenas na “arte”.


Fontes:

Diário de Notícias 1 / Diário de Notícias 2 / Diário de Notícias 3 / Diário de Notícias 4
Berlinale / BrasilNews 1 /BrasilNews 2 / Euronews
Estadão 1 / Estadão 2
Cinema UOL 1 / Cinema UOL 2
Excelsior / Videohobby
Folha UOL / Terra: JB online