quarta-feira, novembro 10

DOCLISBOA, uma resma de telas de guerra

O II Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa encheu os auditórios da Culturgest e deixou milhares de olhos perplexos perante os segredos da vida em tempo de guerra

No passado dia 31 de Outubro, foi finalmente revelado o vencedor do Grande Prémio do DocLisboa , II Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa. “A Scuola” do italiano Leonardo Di Constanzo, longa-metragem passada no dia 29, que retrata o dia-a-dia de alunos e professores de uma escola sedeada nos arredores de Nápoles, foi a premiada (no valor de cinco mil euros). O prémio do festival para a melhor curta-metragem foi atribuído a “In the Dark” de Sergei Dvortsevoy e o melhor documentário português foi a “Autografia” de Miguel Gonçallves Mendes. “S21 – la machine de mort khmer rouge” de Rithy Panh recebeu o prémio especial do júri.
Este festival, que, entre o dia 24 e o dia 31 de Outubro, trouxe ao público português 60 documentários, caracterizou-se pela enorme quantidade de documentários alusivos a conflitos militares e políticos do cenário internacional. Porém, dos filmes que abordaram esta temática, só um foi premiado (“S21 – la machine de mort khmer rouge”).
De salientar será igualmente a grande afluência de público a este festival (cerca de 1000 espectadores por dia) que desmente por completo a tese de que em Portugal não existe público para o documentário.
Nas linhas que se seguem, far-se-á um breve resumo dos documentários presentes neste festival que, de algum modo, levavam o público a uma reflexão sobre a guerra e que muitas vezes partiam de realizadores, cujos países de origem se encontram em guerra.

“The revolution will not be televisived”, documentário dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O Brian que abriu o festival (no dia 24 do mesmo mês), retratava as 48 horas de uma equipa televisiva, durante o golpe de Estado contra Hugo Chavez. Trata-se de uma visão pessoal da Venezuela de Hugo Chavez que contraria a visão comum, patrocinada pelos meios de comunicação social, na sua maioria controlados pelos inimigos de Chavez. Ora, o documentário, mundialmente premiado, representa precisamente isto: por um lado, a manipulação que as empresas televisivas fazem dos acontecimentos para detonar o líder carismático; por outro, a impossibilidade disto, perante um povo fortemente ligado às massas populares.

“Detail” de Avi Mograib (realizador israelita), curta-metragem que encheu a tela da Culturgest, no dia 24, é uma sucessão de imagens que deixou o público imerso no conflito israelo-árabe: um descampado, um tanque blindado israelita, ambulâncias, uma menina que chora, uma mulher ferida…a inacabável guerra.

“Checkpoint” de Yoav Samir, também israelita, é um retrato da realidade palestiniana desde 1967: o quotidiano dos postos de controlo israelitas e a selecção arbitrária e humilhante dos palestinianos que podem ou não passar. Ir ao médico, visitar familiares, ou mesmo até ir até aos postos de trabalho são razoes que merecem dúvida e cautela… Perante isto, o espectador terá com certeza recordado ansiosamente o balão com o rosto de Arafat para distrair os soldados israelitas, bem ao jeito de “Intervenção Divina” de Elia Suleiman.

Anu Kuivalainen trouxe, com “Grandad’s waking dream”, no dia 25, as imagens de guerra que o perseguem desde que foi médico na frente russa durante a II Guerra mundial. A morte, o assassínio, a dor e a memória. Numa tela grande.

No mesmo dia, pôde-se ainda ver “Le mur”, onde o conflito israelo-palestiniano voltou à cena, através da realização da francesa Simone Bretton (que, aliás é judia e árabe). Trata-se de uma análise crítica do muro que separa Israel da Palestina, ou do segundo muro da vergonha, como alguns já lhe chamaram. A realizadora filma o muro de ambos os lados; pergunta às crianças porque é que há um muro, as crianças respondem confusas, contradizem-se; há pessoas que saltam o muro, que se escapam por passagens, aberturas e entradas e que pedem para que se filme, para que se mostre no estrangeiro como se foge às leis do muro, para que se mostre que há muito pouca gente a acreditar e a defender o muro. É essencialmente um documentário “a-político”, pois, se por um lado retrata um conflito político, por outro não toma posições definidas, filma o muro como se filmasse uma montanha, fala com as pessoas sobre o muro como se perguntasse de outra coisa qualquer, com uma curiosidade banal. Somos talvez levados a adivinhar as posições de Bretton, mas só da mesma forma que somos levados a ver uma parede e adivinhar que ela é branca, sem no entanto lá estar escrito que é branca.

“La Maison des Saoud”, por Jihan El Tahri, que também esteve presente no Doclisboa a dia 25, foi a exposição das transformações da Arábia Saudita durante o séc XX. Este documentário, com base num profundo trabalho de investigação, trata das relações sauditas com as questões políticas e mesmo militares do nosso século: o conflito israelo-árabe, a política externa norte-americana… Um filme com que certamente Michael Moore se identificaria.

Já no dia 26, o realizador belga Michel Khleifi chegou-nos, pela tela do DocLisboa, com “Ma’loul fête sa destruction”. Trata-se de 30 minutos que em português bem se poderiam chamar “Saudade”. Ma’loul é uma aldeia palestiniana em, em 1948, foi destruída pelo exército israelita. O único direito concedido aos antigos habitantes desta terra é uma visita por ano a Ma’loul. Khleifi transformou essa visita num documentário.

Do mesmo realizador, e na mesma data, seguiu-se “Cantiques des pierres”, história de amor entre dois palestinianos que atravessou a guerra, a destruição, a violência e a morte. Apaixonados desde os anos 60, tiveram de esperar 18 anos para poderem “dar a mão”. Um documentário real e emotivo que recusou todos os esforços de esconder um sorriso. Um auditório rendido por completo.

No mesmo dia, o israelita Amos Gitai trouxe o amargo sabor do fracasso com “Wadi Ten Years Later”: de novo o amor se cruzou com a guerra, em territórios do Médio Oriente. Inicialmente, o amor venceu a guerra. Por fim, a guerra saiu vitoriosa sobre o amor. É, acima de tudo uma história do tempo e da guerra. Num vale em Haifa, palestinianos e israelitas viviam juntos, um casal israelo-palestiniano resiste intimamente ao conflito, recusa-o, ama-se para além dele. Passa o tempo e com o tempo, mais mortes, e mais lágrimas, e mais revolta… Passam 10 anos e Israel e Palestina já não se conseguem enxergar senão amargamente. E a amargura de uma guerra também pode entrar no amor. Enfim, um filme inquietante que “paralisou” a audiência do DocLisboa.

Ainda no dia 26, “Les Escadrons de la mort, l’école française” chegou ao festival, pelas mãos de Marie-Monique Robin, realizadora belga. Semelhante a “La Maison des Saoud”, no que diz respeito ao género de investigação assumido por ambos, não é uma surpreendente obra de arte mas é, sim, uma boa peça de informação. O documentário revela como, após a guerra da Argélia, os militares franceses teriam exportado as suas ideias apologistas de uma violência extrema como forma de combate às populações civis para os exércitos de outros países, marcados por ditaduras de direita (Argentina, Brasil, EUA).

“A guerra do Iraque”
de Leonor Areal animou o pequeno auditório da Culturgest, no dia 27. O documentário dá-nos a visão de uma turma do ensino básico perante a guerra do Iraque. Esta turma faz um filme de animação sobre a guerra do Iraque onde, numa história bem mais criativa do que a realidade, é possível distinguir personagens como George W. Bush, Tony Blair, Saddam Hussein, Osama Bin Laden…

Do mesmo realizador de “Detail”, chegou à tela do DocLisboa, no dia 27, o documentário “How I learned to overcome my fear and love Arik Sharon”. Numa hora, Avi Mograbi descreveu a campanha eleitoral de Sharon e mostrou, de uma forma surpreendente e irónica, como era praticamente impossível não ser conquistado pelo político de extrema-direita.

No dia 28 o espaço “guerra” foi unicamente marcado pelo conflito israelo-árabe. Omar Amiralay surpreendeu o público do Doclisboa, quer com a sua curta-metragem “Le plat de sardines ou la premiére fois que j’ai entendu parler d’Israel”, onde ele próprio faz uma retrospectiva do conflito israelo-árabe, desde a primeira vez que ouviu falar neste (na altura em que o Estado de Israel tinha ainda apenas 2 anos) até hoje, quer com a sua longa-metragem “Il ya tant de choses a raconter”. Esta última tem base numa conversa com o escritor sírio Saadallah Wannous, pouco tempo antes da sua morte. Amiralay e Wannous fazem o balanço destes anos de guerra nos territórios do Médio Oriente. Dois contadores de histórias reúnem-se para contar anos e anos de guerra entre dois povos… Trata-se de um documentário competente, onde a componente informativa pesa, mas onde há uma marca efectiva do cuidado artístico do cinema. Porém, depois do DocLisboa e com os novos dias se apresentam, a certeza é provavelmente comum aos espectadores do festival: serão necessários muitos mais contadores de histórias para acabar de contar esta história.

No dia 30, o espanhol Júlio Medem trouxe ao DocLisboa uma questão política que já assola a Espanha há alguns anos: “La pelota vasca, la piel contra la piedra” é uma reunião de várias entrevistas a figuras de vulto do País Basco, no âmbito de delinear a identidade do Euskadi bem como de procurar as origens de uma luta violenta pela independência que se mantém até aos dias de hoje.

“S21 – la machine de mort khmer rouge”, documentário ao qual foi atribuído o prémio especial do júri, foi realizado pelo cambojano Rithy Panh e, logo no dia 30, conquistou o grande auditório da Culturgest. Trata-se de um impressionante regresso a uma das mais terríveis prisões cambojanas durante o regime de Pol Pot: Tuol Song. Estávamos entre 1975 e 1979, quando este regime de terror foi responsável por 1,5 milhões de mortos. A repetição constante de métodos e torturas que pretendiam culpabilizar quem de nada era culpado é talvez o elemento mais singular e violento do filme. A própria confusão entre vítimas e culpados é também uma questão perturbante. Trata-se assim de um bocejo da memória, como se esta, no sono constante da história, quisesse dizer que ainda não esqueceu. Não é propriamente um filme sobre guerra mas é pelo menos um retrato da guerra que um Estado pode impor ao próprio povo. Um documentário impressionante sobre um momento terrível mas pouco conhecido da história internacional.

No mesmo dia, Elia Suleiman, realizador de “Intervenção Divina”, que estreou em Portugal há já alguns anos, foi de encontro ao cruzamento arte/guerra em que este blogue tem base, através de “Le rêve arabe”. De facto, neste documentário, o realizador tenta perceber como é possível a sobrevivência de formas estéticas e de criatividade num espaço confinado à violência, ao fascismo, ao sofrimento e à morte. Como é possível fazer arte com o som dos bombardeamentos tão perto? – pergunta-se Suleiman. Pois esta é também uma das questões inspiradoras deste blogue.

Mas Suleiman não se ficou pelo dia 30… Assomou igualmente nas telas do DocLisboa, logo pelo fim de tarde do dia 31. “Cyber Palestine” é de novo um exemplo de bom humor perante a perseguição das autoridades israelitas sobre os palestinianos. As personagens são José e Maria, um casal de palestinianos da faixa de Gaza. Foi provavelmente um documentário que deixou o DocLisboa submerso num sorriso… Amargo.

Para terminar os filmes de guerra do DocLisboa, ficou Azza al-Hassan a espreitar por uma janela em Ramallah. O filme chama-se “Newstime” e deixou uma audiência inteira a espreitar pela janela de al-Hassan: das janelas de Ramallah, como das janelas de todo o mundo, também havia pessoas a apaixonarem-se, a amarem-se, pessoas a viver. Talvez por isso a arte também sobreviva em tempos de guerra.


Fontes:

http://www.doclisboa.org/screen2.html

www.publico.pt